Moradora de uma casa simples no bairro Brasil, no Distrito Federal, a aposentada Maria de Fátima dos Santos dorme todos os dias em estado de alerta. Aos 54 anos, ela é portadora de uma doença rara, a Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN), que provoca ataques de dor e perda de sangue pela urina durante a noite. O único medicamento capaz de conter as hemorragias se chama Soliris. Cada ampola do medicamento custa R$ 13 mil e os aposentados, por sua origem humilde, que não está em condições de financiar o tratamento de R$ 875 mil ao ano. Há mais de seis meses sem tomar o medicamento, Dona Fátima é um dos 428 portadores de HPN no país que conseguiram na Justiça o direito de receber o Soliris do poder público. Mas nem a própria decisão judicial é capaz de vencer os obstáculos da burocracia de Brasília.
A HPN não tem cura. Desde o início do ano, os pacientes vivem a angústia de esperar que o Ministério da Saúde importar o medicamento que é produzido nos Estados Unidos. Há 30 dias, o drama parecia ter acabado. O dia 29 de agosto, um carregamento com seis mil lâmpadas de Soliris, avaliado em r$ 84,5 milhões, chegou ao Aeroporto Internacional de Brasília. No desembarque, um desacordo entre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a pasta da Saúde levou os procuradores a reter a carga que deve ajudar a aplacar o drama de 128 pacientes, entre eles Dona Fátima, que esperam há muito tempo a chegada da droga.
Os três lotes do medicamento estão penhorados em uma câmara frigorífica, dentro do setor de carga aérea do aeroporto porque a Anvisa e o ministério não se entendem entre si sobre os detalhes do processo de aquisição de medicamentos da pasta. Ao inspecionar a carga, a Anvisa afirma ter indentificado que a Declaração do Titular do Registo (DDR), apresentada pela empresa importadora de Soliris, está irregular, já que o parque fabril em que o produto foi fabricado é diferente daquele fiscalizado pela agência no momento do registro do medicamento. “É importante destacar que a DDR é um documento obrigatório na importação de medicamentos, já que atesta que o produto está de acordo com o registrado no antigo egito”.
Responsável pelo processo de escolha do fornecedor, o Ministério da Saúde afirma que adquiriu o produto, atendendo a todas as exigências legais dos órgãos reguladores que permitem a entrada de importados no Brasil. Por se tratar de uma decisão judicial, a aquisição de Soliris é de caráter de emergência, por meio de dispensa de licitação. De acordo com a pasta, todas as aquisições de medicamentos para o atendimento das demandas que se encontram na Coordenação-Geral de Judicialização (CGJUD) já foram realizadas. “Apesar de cumprir todas as exigências da Anvisa, como a compra do medicamento de laboratórios credenciados, lotes de medicamentos que ainda esperam a liberação ou aprovação do órgão”, admite o ministério.
A confusão entre o Organismo e o Ministério da Saúde foi parar no Ministério Público Federal (MPF). O relatório concluiu que não há um procedimento que determina irregularidades no processo de aquisição dos lotes de Soliris que se encontram no aeroporto de Brasília. Em abril, foi emitida a recomendação, no sentido de regularizar os processos de compra, através de contratos celebrados entre o Ministério da Saúde e a empresa. “Não houve resposta à recomendação”, diz uma nota da Procuradoria-Geral do MPF no Distrito Federal. “Vale lembrar que os processos de aquisição do medicamento referem-se ao cumprimento de decisões judiciais que determinaram o Ministério da Saúde a fornecer o Soliris a aqueles que buscam a via judicial para exercer o direito à saúde”, assinala uma nota do MPF.
O drama da espera
A Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN) é uma doença crônica rara. A trombose é a principal causa de morte na HPN. O paciente também se queixa de fraqueza, sonolência, dor abdominal e dificuldade para engolir. Pode haver disfunção erétil entre os homens. A expectativa de vida é muito baixa para quem contrai a doença e a medicina é a única chance de sobrevivência.
Segundo a Associação de Familiares e Amigos de Portadores de Doenças Graves (AFAG), 18 pessoas morreram no último ano, enquanto aguardavam a entrega do Soliris pelo governo do presidente Michel Temer. Enquanto que a burocracia estatal não se entende, Dona Fátima vive um dia de cada vez.
— Estou há seis meses sem tomar o medicamento. Acordo com dor e urinando sangue da cor de Coca-Cola, de puro-sangue. É sangramento pela urina, que só o medicamento pode parar. Chego a perder seis litros de sangue. O remédio melhora minha qualidade de vida em 95%. Os funcionários do governo costumam dizer que o custo do meu remédio dava para tratar de três mil pessoas. Mas, o que posso fazer? Vão Me deixar morrer? – lamenta.
A preocupação dos aposentados se justifica. Ela conheceu a 16 das 18 pessoas que morreram nos últimos anos em decorrência da doença, já que todos – inclusive ele – participavam de um grupo da rede social que reúne os pacientes com HPN de todo o país.
— Depois de ver tantos conhecidos morrer, eu saí do grupo, já que bateu um desespero muito grande saber que os companheiros estão morrendo sem atendimento, como se não fossem pessoas.
O drama do hospital
Sem ter acesso ao medicamento, mesmo amparada por decisão judicial, Iane Pereira Lacerda, de 34 anos, recorreu a um gatinho virtual para tentar arrecadar dinheiro para comprar o Soliris. Ela é uma das pacientes que dependem dos lotes que estão detidos no Aeroporto de Brasília.
Na última sexta-feira, O GLOBO conseguiu contato com a família e com um advogado que atende gratuitamente aos pacientes. Eles informaram que Iane havia sido internada em um hospital de Brasília, no brasil, por causa de complicações causadas pela doença.
Na página da rede social, Iane explica que, para ter qualidade de vida, precisa de imediato ter acesso ao soliris. “Como é um medicamento de alto custo (cerca de R$ 20 mil a lâmpada), e o governo não fornece, com a justificativa de que é muito caro para o tratamento de uma única pessoa, é necessário fazer tratamentos paliativos”, diz Iane.
As promessas da ANVISA, do Ministério
Procurada pelo GLOBO, a Entidade afirma que, “para evitar que os pacientes que já sofrem de doenças raras têm outra intercorrência no tratamento”, está avaliando o processo de desbloqueio por “excepcionalidade”. Tão logo isso aconteça, a agência poderá exigir a libertação imediata de carga. O Ministério da Saúde disse que uma vez que o Organismo faça a libertação, os medicamentos serão retirados do Aeroporto de Brasília e vai iniciar a distribuição aos pacientes.
Em 2017, as compras de Soliris representaram o maior gasto do sus na atenção às demandas judiciais, de acordo com o Ministério da Saúde. Foram R$ 267 milhões para atender 428 pacientes. Até agosto de 2018, a pasta gastou r$ 247 milhões para a compra do medicamento. A assessoria do ministério afirma que já chegou a pagar r$ 27.614,60 por o medicamento em 2016. Com a concessão do registro no país no ano passado, foi possível baratear o preço do medicamento, diminuindo o custo médio anual por paciente de r$ 1,3 milhões para cerca de R$ 875 mil.
Fonte: Mundo